Emancipação criativa na prática:
- Ipsum Nocce
- 17 de jul. de 2020
- 11 min de leitura
dos filmes para crianças aos filmes de crianças
Ricardo Macêdo
Fundação de Arte de Ouro Preto
ipsun@hotmail.com
Introdução
Quando vemos um filme realizado por um adulto, entendemos que aquelas imagens mostradas nele são a maneira como o realizador/diretor acessa, de certa forma, as realidades ao seu redor e produz ficções, fantasias, etc. Entretanto, o que podemos dizer quando crianças de 8 a 11 anos de idade filmam e produzem seus próprios filmes? O que querem com isso? Minas Gerais é um estado com relevância histórica na produção de filmes para crianças, como por exemplo os realizados pelo mineiro Humberto Mauro: Jonjoca, o dragãozinho manso (1946) e A velha a fiar (1964), filmes que revelam experimentações dentro dos limites plásticos/visuais da época, na fronteira entre filmes para a infância e o esforço de compreensão prática da linguagem cinematográfica. Jonjoca, o dragãozinho manso, é tido como o primeiro filme brasileiro que “(...) reúne os atributos do que no futuro se conceituaria como filme infantil” (MELO, 2011, p.92). Todavia, estes filmes são para crianças e não filmes de crianças, pois dificilmente temos filmes realizados por crianças.
Assim, este texto propõe salientar a importância do uso metodológico da emancipação criativa na produção cinematográfica, realizada por crianças, pautado nas ideias de dois autores: o educador brasileiro Paulo Freire e o poeta e pedagogo francês Fernand Deligny que respectivamente, estão atrelados a uma pedagogia da autonomia e a uma pedagogia emancipatória. Para isso, relatarei uma experiência de dois anos em sala de aula dentro da Fundação de Arte de Ouro Preto - FAOP, onde, imbuído das ideias desses dois autores, foram desenvolvidos 11 filmes curtas metragens, realizados por crianças na faixa etária entre 8 (oito) e 11(onze) anos.
Alguns pressupostos nortearam essas produções fílmicas, tais como: os filmes seriam realizados com baixo orçamento; a negação da ideia de que o professor detém o conhecimento sobre o que deve ser ensinado; o uso da improvisação (tanto técnica, no que se refere ao uso da gambiarra, quanto comportamental, frente as situações imprevistas); criação de ambientes e espaços de convívio enquanto dispositivos (tendo por base alguns (as) artistas e teóricos como Alan Kaprow, Rivane Neuenschwander, Hélio Oiticica, Laura Lima e Michel Maffesoli, por exemplo) e utilização de autores que lidam com o universo imagético infantil (Gato Galático, Maurício de Souza, João Batista Melo e Eduardo Escorel, por exemplo).
O termo dispositivo é aqui entendido como um suporte para dinamizar, enriquecer e resguardar as relações intrapessoais e interpessoais dentro dos espaços de convívio e ações colaborativas, no processo de realização dos filmes. São exemplo de dispositivos: jogos de tabuleiro, oficinas e piqueniques, utilizados com o intuito de reforçar o espírito coletivo no grupo, os vínculos afetivos entre as crianças e a criação espontânea através do lúdico.
Espaços de convívio e formação de ambiências também são pensadas aqui como dispositivos; tais estratégias foram utilizadas como ferramentas que ajudaram a enriquecer as dinâmicas coletivas de trabalho das crianças, em termos grupais. Segundo o sociólogo francês Michel Maffesoli, a ambiência designa uma emoção coletiva que se desdobra e se funde a prática social (Fig. 1 e 2). Podemos tornar sua compreensão menos abstrata a partir de exemplos cotidianos, que nos ajudam a pensar a relação entre ambientes físicos e comunidades: beber, conversar, comer, circular e ler contribuem para a criação de “auras” específicas e formam ambiências fornecedoras do aglutinante que estrutura vínculos dentro de situações de convívio.


Dentro desses espaços, a partir das ideias do educador francês Fernand Deligny (1913-1996), proponho que “a criação, embora conduzida pelo professor, é na verdade realizada por toda a classe transformada em coletivo. Essa passagem nos apresenta duas formas de imaginação: uma individual, subjetiva e passiva, e uma outra ativa, resultado de um processo coletivo.” (MIGUEL, 2014, p.05). Essa estratégia desdobra-se por meio dos espaços físicos, dos objetos e dos brinquedos, criando espontaneamente o que alguns artistas chamam de mundo enquanto jogo. O artista e professor lituano Alan Kaprow (1927-2006) nos dizia que a criança brinca (o termo playing tem dois sentidos, brincar e jogar), com sua boneca e sua casinha de boneca e com isso representa - no sentido ritual - o que os adultos fazem (Fig. 4 e 5). A criança brinca com seu carrinho de plástico e com isso representa o que o pai faz. Isso também é “[...] identificação do evento [...] não tanto mostrado figurativamente, mas de fato reproduzido na ação” (KAPROW, 2004, p.167).


A partir dessas premissas, por extensão, podemos dizer que os espaços de convívio e as ações executadas dentro deles, não necessariamente estão atrelados ao uso dos espaços físicos em si, mas sim a atmosfera subjetiva que esses espaços propõem por meio do convívio entre as crianças e o professor. A palavra convívio, convivium, está ligada à ideia de banquete ao redor de uma mesa; da ação de banquetear. Nesse caso, a circunstância é possibilitada por um consenso em torno de um ambiente específico. Sendo assim, a ideia de ambiência e de espaços de convívio, são entendidos (as) dentro das aulas ministradas para as crianças, como dispositivos, como ferramentas que facultam o andamento dos processos de produção dos filmes.
Nesses espaços, procuro minimizar as ordens hierárquicas entre professor e alunos (as) o tanto quanto possível, valendo-me das concepções de uma pedagogia da autonomia, onde segundo o educador brasileiro Paulo Freire:
É nesse sentido que ensinar não é transferir conhecimentos e conteúdos, mas sim, é ação pela qual um sujeito criador dá forma, estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado. Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto, um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender. (FREIRE, 1996, p.12)
Ensinar é ter respeito pelos saberes do educando, é poder estar a par do que os (as) alunos (as) trazem para a sala de aula, em termos de imaginário, estar a par do tipo de realidade que desejam apresentar em um filme; para Freire, deveríamos nos perguntar por que não “estabelecer uma necessária ‘intimidade’ entre os saberes curriculares fundamentais aos alunos e a experiência social que eles têm como indivíduos?” (FREIRE, 1996, p.15).
Para isso, advogo aqui a importância de se pensar no contributo de crianças enquanto autores críticos: não como consumidores passíveis do que lhes é imposto, propondo filmes infantis de crianças e não filmes para crianças (Fig. 7, 8), produções realizadas por elas, visando que se tornem agentes modeladoras e autônomas de dinâmicas sociais intersubjetivas, onde a colaboração e a resiliência frente a situações problemáticas grupais, possam ser uma constante.


Metodologia
Este estudo de caso é referente aos (as) 23 alunos (as) atendidos (as) no Ciclo Rotativo da Fundação de Arte de Ouro Preto, referente aos anos de 2016 e 2017. A faixa etária dessas crianças é de 8 (oito) a 11 (onze) anos, e elas são tanto da comunidade de Ouro Preto quanto dos distritos. O trabalho foi feito com a ajuda de um estagiário em quatro etapas, dentro dos semestres letivos, dos cursos livres da FAOP. A produção em cada semestre (dos 4 semestres entre 2016 e 2017) foi distribuída da seguinte forma: no primeiro mês pesquisamos vídeos, livros e revistas orientados por um tema de interesse votado pelo grupo, juntamente com o início do estudo de técnicas plásticas a partir da confecção de figurinos e objetos cenográficos; no segundo mês, iniciamos o contato com os equipamentos de filmagem; no terceiro mês, juntamos as confecções dos objetos aos cenários e escolhemos as locações. No quarto mês, fazemos a edição do filme e o cartaz. Também nesse último mês, mostramos o filme em duas sessões de cinema para a comunidade.
Alguns autores e conceitos nos serviram de base para repensar o vínculo entre alunos (as) e professor em sala de aula dentro da Fundação de Arte de Ouro Preto, especificamente, dentro do Núcleo de Arte da FAOP, relativo ao contato com as crianças de 8 a 11 anos, no intuito de incorporar outras maneiras de fazer a prática educativa, como por exemplo Michel Maffesoli e o conceito de ambiência, Paulo Freire e a ideia de autonomia e Fernand Deligny e a noção de desvio. Cada um deles foi incorporado aos planos de cursos e planos de aula, de forma a estarem na estrutura e na raíz da ação educativa. Para isso, vou utilizar como exemplo um filme realizado a partir das concepções desses autores.
O curta metragem “A estória de Nina” (2016), dirigido por Claudio Falcão (estagiário), Olga Dias (aluna) e Ricardo Macêdo (professor), narra a vida de uma menina que vive na cidade de Los Santos. Ela tinha uma vida normal: brincava, adorava sair com suas amigas e ir à escola. Até que um dia recebe uma visita inesperada, um pequeno alienígena invade sua casa trazendo muita confusão. Este tema foi discutido em grupo e envolve, entre outras situações: relações escolares, relações familiares, receio do diferente, processos hierárquicos, entre outras situações. O filme foi realizado com equipamentos sucateados utilizados como ferramentas de trabalho: câmeras de fotografar compactas e celulares, tripés quebrados, rebatedores de luz feitos com folhas de isopor e claquete de madeira artesanal. As crianças tiveram de pesquisar materiais para produzir seus próprios adereços de cena; pesquisaram, como nos diria Freire, “para constatar, constatando, intervenho, intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade.” (FREIRE, 1996, p.14). Para isso, criei espaços de convívio e os pensei como dispositivos para estimular a criação, a pesquisa e a autonomia. Tais ambiências, estruturam vínculos entre as crianças e aglutinam objetivos em torno de uma prática comum. No caso em questão, Maffesoli nos diz que a produção de filmes:
Nesse sentido, estamos mais atentos ao continente, que serve de pano de fundo, que cria a ambiência e que, por isso, une. Em todos os casos, trata-se, antes de tudo, daquilo que permite a expressão de uma emoção comum, daquilo que faz com que nos reconheçamos em comunhão com os outros. (MAFFESOLI, 2010, p.63)
Essa emoção comum precisa de uma base, um solo material para ser gerada e estimulada: tapetes grandes no chão, círculos de conversa na pracinha, um colchão inflável e cadeiras ao redor ou uma conversa em baixo de uma árvore formam ambiências que constituíram para nós pontes que nos interligavam tanto aos espaços físicos quanto propunham coesão ao grupo, um comungar vitalismos coletivos, que não se explicam simplesmente pela opção de realizar uma atividade visando um fim, mas mais do que isso:
A causalidade ou o utilitarismo não podem, sozinhos, explicar a propensão a se associar. Apesar dos egoísmos e dos interesses particulares, existe um cimento que assegura a perdurância. Talvez seja necessário buscar sua fonte no sentimento compartilhado. (MAFFESOLI, 2010, p.83)
Esses espaços são interpretados dentro dessas aulas como receptáculos que erigem a ambiência e por isso unem diferenças pelo forte sentimento coletivo que engendram. O filme A estória de Nina teve sua narrativa evoluindo a cada aula a partir de conversas das crianças, que iam decidindo como gostariam de ver seu cotidiano no filme que estavam realizando. Tal sentimento é produzido também por meio do brincar, da assunção da brincadeira enquanto dispositivo ativador de emoções coletivas.
Propus essa estratégia do brincar algumas vezes, por perceber o quanto as crianças estavam perdendo tempo nos celulares, com jogos virtuais ou coisas do gênero, e algumas questões me vieram em mente: em que momento a brincadeira física se perde? Os ritos de passagem ocorrem também na infância em vários momentos, mas quando isso é substituído por uma não representação dessas experiências? Ocorre o que alguns filósofos chamam atualmente de morte da experiência. “Para a maioria de nós essas experiências são adquiridas indiretamente, via televisão. Delas participamos sozinhos, imobilizados.” (KAPROW, 1993, p.171).
Outra característica das etapas do processo de realização dos filmes, são as “reuniões onde todos (as) falam” (Fig. 13), um espaço de convívio utilizado como dispositivo para que todos se ouçam e, através do diálogo, busca-se o ajuste de ideias, a resolução de conflitos, a construção de roteiros coletivos, a divisão de tarefas e proposições de mudanças. Acredito que “quem tem o que dizer tem igualmente o direito e o dever de dizê-lo. É preciso, porém, que quem tem o que dizer saiba, sem sombra de dúvida, não ser o único ou a única a ter o que dizer.” (FREIRE, 1996, p.44). Estes momentos ocorrem sempre antes ou depois da aula iniciar. Neste sentido, qualquer espaço físico da casa pode ser transformado em local para essas reuniões, e elas também são realizadas sem a presença do professor em sala de aula.



Discussão dos resultados e conclusão
Por que uma criança faria um desvio extremamente longo pela praça se ela está carregada de equipamento pesado para a produção de um filme e poderia seguir uma linha reta e mais curta? Por que ela retira a tampa da lente de uma câmera e a liga se ela não vai filmar? Para o adulto e suas funções em busca de uma finalidade, isso tudo parece um erro, um desvio sem sentido; já para a criança, há um agir que não se pauta no projeto adulto: pagar as contas, sair para chegar em algum lugar, fazer pão de queijo para comer, registrar imagens para a posteridade, etc.
As linhas de errância, estimuladas por este tipo de produção cinematográfica - as quais tanto assustam pais e filhos - são as linhas mestras onde moram os perigos, os medos, os riscos e a incerteza. Contudo, felizmente duas ideias que as crianças conhecem muito bem surgem nessas experiências: emancipação emocional e a autonomia prática por meio do brincar de fazer filmes. É esse convívio que oportuniza pais e filhos, em termos qualitativos, a constatarem mudanças positivas nos comportamentos de seus filhos em casa e, por outro lado, se reconhecerem na ficção imagética e repensarem suas realidades: as relações arbitrárias em casa, as dificuldades dos filhos na escola e os comportamentos antissociais, e é através dessas produções que muitos alunos perderam a vergonha de falar em público, onde trabalharam dificuldades motoras da fala, onde começaram a praticar dança, jogos corporais, teatro, e também fotografia e vídeo (algumas dessas crianças tem seu próprio canal no Youtube). Percebemos isso nos feedbacks, nas reuniões que realizamos com os pais e nas conversas ao final das aulas. Imagino que um dos ganhos dessa interação das crianças com o ambiente das artes visuais é o “descondicionamento”, é “poder pintar o sol verde na folha do caderno”, como diria Olga, minha ex-aluna, atualmente, com 10 anos de idade.
A proposta, em termos quantitativos, coloca-se como uma contribuição para a comunidade de Ouro Preto. Cada semestre realizamos um filme curta metragem que é direcionado para um canal no YouTube1, propondo acesso democrático a produção. Após o término de produção do filme, a comunidade é convidada para assisti-lo em duas ocasiões. Também constitui uma oportunidade para: um trabalho colaborativo, para formação de público (atual e principalmente futuro) das Artes Visuais; estímulo a criação de projetos semestrais vinculados a educação infantil por meio das Artes Visuais (o curso de cinema também prevê 4 visitas monitoradas a espaços como: o anexo do Museu da Inconfidência, exposições de artes na Galeria da FAOP, visitas ao CCBB em Belo Horizonte, etc.); estímulo a formação de aspectos identitários da comunidade (possibilidade de fruição da auto imagem via produções cinematográficas) e estímulo à produção visual contemporânea em Ouro Preto.
O impacto na comunidade ainda tem duas particularidades: primeiro, é percebido um aumento do número de inscrições na Fundação de Arte de Ouro Preto, de jovens e crianças que procuram conhecer mais as linguagens das Artes Visuais; um segundo aspecto é o surgimento de novos youtubers, artistas e videomakers (crianças, jovens e adultos). Em relação aos dados estatísticos na mostra final de filmes da FAOP, como pode ser comprovado observando a planilha semestral do primeiro semestre de 2017, por exemplo, foi de 657 visitantes, tanto da comunidade, quanto de Belo Horizonte - MG. O número de crianças e jovens matriculadas foi de 56, tendo um total de 235 alunos (as) entre crianças, jovens e adultos.
Palavras-chave: cinema, educação, artes plásticas, colaboração.
Referências
DELIGNY, Fernand. O aracnídeo e outros textos. TOLEDO, Sandra Alvarez (org), Editora N-1. São Paulo, 2015.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Editora Paz e Terra, São Paulo, 1996.
KAPROW, Allan. Essays on the blurring of art and life. Edited by Jeff Kelley. University of California Press, Berkeley Los Angeles London. 1993.
MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo na sociedade de massa / Michel Maffesoli; apresentação e revisão técnica Luiz Felipe; tradução Maria de Lourdes. – 4ª ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
MELO, João Batista. Lanterna mágica: infância e cinema infantil. Ed. Civilização Brasileira, São Paulo, 2011.
MIGUEL, Marlon. Os dois lados da inquisição: Fernand Deligny, ensaios de uma tentativa pedagógica. UFRJ, 2014.
1https://www.youtube.com/channel/UCPubpnlPeGmWmiSthO_tz-Q/videos?shelf_id=0&view=0&view_as=subscriber&sort=dd acessado em 22.09.2018 as 7h31.
Texto apresentado no Seminário de Pesquisa em Artes da UNIMONTE (MG) em 2018 e
no Fórum de Pesquisa em Artes - Belém, 2020.



Que bom ! Sim, venha a OP depois da pandemia, vais gostar. Quem sabe não ministras uma oficina aqui?
Gostei do texto sobre as crianças e o processo educativo que vocês aplicam em O.P, quem dera tivesse tido uma infância assim. Abraços.