Algoritmos, Capturas e Design Generativo: O Valor da Imprevisibilidade na Era do Controle Digital
- Ipsum Nocce
- 14 de set. de 2024
- 7 min de leitura
Imagens também são constructos que nos orientam no mundo, já nos diria o filósofo checo-brasileiro Vilém Flusser. São a possibilidade de vermos o mundo fora dele, são formas de fornecer sentido ao mundo; contudo, ao fazer isso, elas também o escondem. É como um filme que prende nossa atenção por 2 horas em uma pequena tela de celular: projeta uma história com começo, meio e fim, e nos retém ali, confinados, dando sentido àquilo que enxergamos. E, por ser tão certo e explícito, paramos ali e ficamos durante horas. Contudo, existe um risco grave em tudo isso.
Fotografia "inédita" de Pablo Picasso.
Há algum tempo, o crítico e fotógrafo espanhol Juan Fontcuberta encontrou, em um quarto do pintor Pablo Picasso, fotos escondidas, fotos "picassianas". Logo em seguida, todos os meios midiáticos estavam divulgando a descoberta. Vários sites divulgaram a notícia; contudo, ela era falsa. Não havia nenhuma foto nova de Picasso; todas foram feitas por Fontcuberta. Não esqueçamos: Fontcuberta estuda as fake news há quase 40 anos. O que ele queria com isso? Talvez, uma das possíveis versões para interpretar essa situação seria mostrar que pessoas mergulham em mundos fora do próprio mundo, mergulham na imagem para buscar orientações de como ser e estar nesse mundo aqui. Ou seja, a imagem, para muitas pessoas, é uma realidade tão concreta que é lícito que seja seguida como guia, como mapa e como muro branco, e o mundo é algo em segundo plano, um figurante e suporte para a imagem, e não o contrário.
Como poderíamos, então, nos precaver do domínio da imagem e de sua constante e atual prevalência em nosso cotidiano? Lembremos que a imagem é um mapa para os caminhos que gostaríamos de trilhar. Ou seja, nós escolhemos o caminho a partir de preferências, por vezes, bem marcadas e constantes. Contudo, e se essas preferências fossem flutuantes? E se as escolhas fossem sempre móveis e instáveis, como a imagem (ou, atualmente, os algoritmos e as IAs) iria nos sequestrar?
Em alguns casos, os algoritmos de certas mídias sociais não entregam nossas postagens porque elas divergem bastante entre si, ou seja, não têm uma constância de assuntos, variam demais. O que fazem os algoritmos? Entram em pane e nos despejam no ostracismo da rede, pois ficam sem mapas para nos orientar e para se orientar, sem saber a quem entregar o conteúdo. Ficam sem saber qual público-alvo. Quebramos o sistema que ancora o controle dessas máquinas à nossa vida. Bem, pagamos um preço: teremos poucas curtidas pelo fato de o sistema não realizar a entrega de nossas postagens. Contudo, não teremos um rosto fixo e apresentável para o rendimento da rede.

Outra estratégia interessante vem da área do design generativo (1) aplicado à produção de logomarcas. A empresa norueguesa Nordkyn cria logomarcas mutáveis a partir de relações com seres vivos e a natureza. Ela produz uma identidade variável, que muda de acordo com as mudanças que ocorrem no cotidiano do ser a quem ela está atrelada.
“A região ao norte da Noruega, Nordkyn, assim como diversos outros grupos ao redor do globo nos últimos anos, investiu em uma nova marca dinâmica – premiada criação do Neue Design Studio -, que saísse de sua clausura imóvel: baseada no formato hexagonal de um floco de neve, o logo é como se fosse um breve visualizador de dados em forma termômetro dinâmico, com input alimentado por dados atualizados frequentemente. A angulação dos vértices da figura geométrica se modifica, formando uma seta que indica a direção do vento, e as cores se alteram de acordo com a temperatura da região. Os dados regem a cada cinco minutos uma variação da identidade visual. Há, ainda, uma extensa aplicação do sistema de logos no design gráfico, de camisas a papelaria.” (2)

Marca mutante da Península Escandinava Nordkyn que informa a temperatura, quando o usuário passa o mousE POR CIMA DO SIMBOLO. Copyright 2012 por Dynamic Identities, p. 190-191.
Essa experiência bem-sucedida nos ensina que existem formas de escapar aos sequestros que as imagens vêm efetivando por meio das mídias sociais e do aparelhamento político atual. Seja de que partido político for, se existe representação, existe captura e sequestro de identidades, principalmente as mais indefesas. Para mim, idosos e crianças são os mais vulneráveis, pois adultos, depois que entram nesses mundos-mapas, estão perdidos para sempre, ou até que o futuro me prove o contrário.
A partir disso, podemos imaginar que, se nossos gostos no futuro não forem tão estáveis e nossas identidades tão invariáveis, se elas fossem mais um acúmulo anárquico de experiências e menos uma estabilidade mantenedora da identidade e de identificações com grupos específicos, poderíamos escapar das capturas e da dependência de mundos que nos indicam o caminho por meio das imagens.
A proposta de uma identidade flutuante se opõe radicalmente a essa lógica. Identidade flutuante implica uma ruptura com a necessidade de consistência, previsibilidade e homogeneidade que os algoritmos procuram. Em vez de se basear em um “eu” fixo, estável e coerente, essa noção sugere uma identidade que é mutável, ambígua e aberta à constante transformação. Tal identidade desafia os algoritmos, que se fundamentam em padrões contínuos e rastreáveis. Quando uma pessoa se recusa a se conformar com expectativas pré-programadas e adota uma postura errática, sua trajetória se torna opaca para os sistemas algorítmicos. Isso implica que, ao se manifestar como múltiplas personas ou se comportar de forma imprevisível, o sujeito dificulta o mapeamento e a categorização.
Uma identidade flutuante, então, pode ser vista como uma estratégia de resistência às forças de controle algorítmico. Ao fragmentar a si mesmo em múltiplas facetas, o sujeito torna-se um "território fluido", o que desestabiliza a leitura que as máquinas fazem dele. Isso conecta-se à noção de anarquia identitária, onde a identidade não é vista como algo a ser consolidado ou como um produto final, mas sim como um processo em constante evolução, com mudanças contínuas de perspectivas, gostos, valores e expressões. Esta perspectiva lembra a visão deleuziana de subjetividade, na qual o “eu” não é uma entidade fixa, mas uma multiplicidade de fluxos, desejos e devenires.
A Instabilidade como Força Criativa
A instabilidade identitária pode ser também entendida como uma fonte de potência criativa e emancipatória. Se as IAs e algoritmos operam por meio da repetição de padrões e da identificação de comportamentos recorrentes, a flutuação constante nas preferências e identidades abre espaço para o imprevisível e o novo. Isso pode ser uma maneira de escapar da predição algorítmica e dos comportamentos padronizados, como sugere a ideia de “devir” no pensamento de Deleuze e Guattari. Para eles, o processo de devir é sobre a transformação e o movimento perpétuo; não há destino fixo, apenas um fluxo contínuo de criação e reinvenção.
Em termos práticos, essa ideia pode ser aplicada de maneira disruptiva no uso das mídias sociais (as chamadas redes sociais) e em interações com algoritmos. Em vez de seguir um comportamento previsível, como a publicação regular de conteúdos sobre um mesmo tema ou a manutenção de um padrão visual nas redes, o sujeito flutuante altera constantemente sua expressão, variando entre interesses, modos de se comunicar e de se apresentar. Essa diversidade impede que os algoritmos criem perfis fixos ou sugiram publicidades e conteúdos precisos, pois a própria trajetória desse indivíduo foge às expectativas.
A Subversão do Capitalismo de Dados
A identidade flutuante pode, também, ser vista como uma forma de subversão ao capitalismo de vigilância, termo cunhado por Shoshana Zuboff para descrever a lógica do capitalismo contemporâneo que extrai valor econômico a partir da coleta e análise de dados pessoais. Nesse contexto, as identidades digitais são monetizadas por meio de padrões comportamentais consistentes e previsíveis, que permitem que as corporações personalizem anúncios e produtos de maneira eficiente. Ao adotar uma postura identitária fluida, o indivíduo subverte essa lógica, pois se recusa a oferecer um “eu” coeso e rentável para ser explorado.
A flutuação identitária, nesse sentido, pode ser compreendida como uma estratégia de contra-conduta frente à exploração algorítmica. Ao escapar da categorização, o sujeito impede que seu comportamento seja traduzido em dados capitalizáveis. A identidade flutuante é uma tática de resistência ao regime de controle e exploração das big techs, desestabilizando os mecanismos de vigilância digital que se nutrem de previsibilidade e padronização.
A Fragilidade e o Desafio
Contudo, há também um risco inerente à adoção dessa identidade flutuante: a fragmentação e alienação social. Em um mundo em que as mídias sociais se tornam o espaço dominante de interação e reconhecimento, a recusa de uma identidade estável pode levar ao isolamento, como já acontece quando o comportamento de um usuário não é reforçado pelos algoritmos. A variação constante nas postagens, por exemplo, pode resultar em baixa visibilidade e engajamento, o que é contrário às normas de sucesso nas mídias sociais, onde o “engajamento” se torna uma métrica de validação social. Assim, a identidade flutuante é, ao mesmo tempo, uma arma poderosa contra os mecanismos de captura, mas também é desafiador, pois implica uma recusa em aceitar os confortos da consistência e a recompensa das interações massificadas.
A Recriação Contínua: Potência e Vulnerabilidade
Portanto, assumir uma identidade flutuante é propor uma forma de existência onde a transformação contínua não apenas nos liberta das amarras algorítmicas, mas também nos insere em um novo tipo de vulnerabilidade: a de ser incompreendido, ignorado ou rejeitado por sistemas que não estão programados para lidar com a complexidade e o MOVIMENTO CONSTANTE. Trata-se de um projeto de vida que escapa ao controle, mas que também recusa a estabilidade. Esse tipo de identidade encontra forças em espaços alternativos, onde a fluidez é celebrada, como nos coletivos de coletivos (Ruan Grupa, por exemplo), ou nas zonas autônomas temporárias, nas Gigs, nos grupos que praticam micropolíticas ou nos grupos nômades, onde o valor não está na previsibilidade, mas na originalidade e na inovação constante.
Para que essa identidade flutuante se estabeleça de forma mais ampla, seria necessário também fomentar uma cultura que valorize a multiplicidade, o improviso, o conflito e a divergência, o que implicaria uma transformação nos próprios sistemas educacionais, culturais e sociais que, tradicionalmente, valorizam o fixo, o estável e o previsível. Além disso, a reflexão sobre identidades mutáveis pode nos ajudar a criar um futuro em que algoritmos sejam menos controladores e mais capazes de lidar com a complexidade do ser humano, refletindo sua natureza diversa e em constante devir, ou seja, trabalhariam para e na educação das sujeitas.
Em suma, a ideia de uma identidade humana flutuante aponta para um caminho de emancipação em um mundo cada vez mais regulado por algoritmos. Ela propõe não apenas uma estratégia de resistência contra a captura e a mercantilização das identidades, mas também uma forma de experimentar novas maneiras de ser e estar no mundo, onde a fluidez e a mudança são vistas como forças poderosas, e não como fraquezas.
1. O design generativo, também conhecido como design gerativo[1] é um método cuja finalização, sendo ele imagem, som, arquitetura ou animação, é gerado através de regras ou Algoritmos, geralmente usando para isso programas de computadores. A maioria desses se baseia em um parâmetro de modelagem. É um modo ágil para se explorar novas possibilidades do desenho, usado em vários campos como na arte, arquitetura, design gráfico e digital, entre outros.
2. https://labvis.eba.ufrj.br/nordkyn-e-os-logos-dinamicos/ acesso em: 13 de setembro, 2024, às 23h12.




link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link link