Devoção e sistema da arte em Ouro Preto.
- Ipsum Nocce
- 20 de abr.
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Atualizado: 24 de abr.
Inicio este texto com a seguinte questão: existe um sistema da arte em Ouro Preto? Ou existe, antes, um sistema de crença e devoção da arte em Ouro Preto?
Um sistema da arte, para que fique claro, é mediado por uma plataforma — física ou virtual — e constituído por grupos de pessoas que formam suas tramas, seus personagens e, por fim, suas dinâmicas internas, as quais podem oferecer múltiplas entradas e saídas.
Ouro Preto, no entanto, não possui um sistema da arte plenamente estruturado: não há mercado consolidado, não há um regime de comunicação eficaz ou atualizado sobre esse circuito, não há galerias ou críticos de arte atuantes, não há marchands nem colecionadores regulares (às vezes, encontramos colecionadores esporádicos). Logo, trata-se de um sistema com muitas lacunas — processos descritos pela filósofa Anne Cauquelin, por exemplo, não se aplicariam aqui.

Como, então, sobreviver em uma cidade onde as obras e os artistas não têm onde desaguar? A resposta está em outro sistema: não o da arte, mas o da crença e devoção. Explico: parece ser uma postura intrínseca à cidade a maneira como as pessoas mantêm suas devoções às obras sacras. Aqui, sacralizam-se as esculturas, as pinturas, os santos e até os artistas que as criaram, pois são eles que possibilitam a devoção.
Na cidade, há muitos artistas modernos — alguns até se autointitulam contemporâneos —, e é aí que observamos um fenômeno curioso. A arte contemporânea rompe com certas autonomias da obra de arte, eliminando, por vezes, o nome do artista e terceirizando sua execução. Essa ausência de autoria, típica do contemporâneo (para citar apenas uma característica), mina a devoção, já que invisibiliza o autor (o santo, a guilda e o artista que a compõe e dirige). Eis, então, um problema grave: sem o sistema de crença e devoção, as obras e os artistas modernos de Ouro Preto não circulam. O que as faz circular é justamente a crença e a devoção que a comunidade deposita naquele ou naquela artista.
Os processos devocionais assemelham-se muito à forma como os apreciadores de arte defendem os artistas locais. Há uma convicção abstrata e invisível tanto na obra quanto no potencial do artista em se inserir no campo contemporâneo — mesmo que nós, pesquisadores, saibamos que pouquíssimas pessoas o conheçam fora de Ouro Preto. Essa convicção é uma espécie de acreditar sem ver, uma devoção quase religiosa à obra e à figura do artista local. Como bem observa o crítico estadunidense Hal Foster, existe aqui "uma dependência do objeto artístico, e mesmo uma devoção a ele, o que poderia fazer do objeto menos um espelho do sujeito que o apoio que o sujeito requer" (FOSTER, 2017, p. 65). Ou seja, há um apego à objetualidade e a noções de forma e conteúdo de inspiração greenberguiana e friediana — uma necessidade da fisicalidade da obra (tal como ocorre nas artes sacras locais) para que o culto e a devoção se sustentem.
Por fim, processos mais conceituais, propositivos, colaborativos ou de arte socialmente engajada não se encaixam nesse repertório local. Eles não dialogam com o sistema de crenças vigente, nem com sua estética e fundamentos disciplinares



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